maio 17, 2025
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Superlativo é a maior cilada da história – 07/05/2025 – Sérgio Rodrigues


A esta altura da transformação do humanismo em farinha no moinho das redes sociais, difícil saber se nosso vício em superlativos é uma das causas ou só um sintoma da encrenca. Seja como for, o superlativismo da linguagem digital é parte importante do quadro.

Superlativo, vale lembrar, é o “grau do adjetivo ou do advérbio que indica qualidade ou modalidade marcadamente superior ou inferior” —a definição é do Houaiss. Pode vir em comparações (superlativo relativo) ou solto no mundo (superlativo absoluto).

Como sempre, exemplos deixam a ideia mais clara: “Machado de Assis é o maior escritor brasileiro”; “Lamine Yamal vai ser o maior jogador de futebol da história”. Dois superlativos absolutos.

Claro que a primeira frase é sensata enquanto a segunda, aplicada a um excelente jogador de 17 anos, é delirantemente precipitada. Mas o superlativismo não se importa com isso.

Trata-se de uma questão de forma. O selo de qualidade —ou de inferioridade— máxima vira um template aplicado a esmo a uma paisagem medíocre, como se sua própria credibilidade de selo não importasse (spoiler: não importa).

“Uma das cenas mais emocionantes da história do cinema”, e vemos o corte de um diálogo banal de alguma comédia romântica banalíssima.

“O conselho mais importante que você vai receber este ano!!!” —e lá vem um trololó de coach em que se misturam duas partes de platitude com uma de picaretagem.

“Entenda por que esse é considerado um dos momentos mais constrangedores do Oscar.” “Essa vila europeia foi eleita a mais bela do mundo.” “Conheça os três hábitos mais prejudiciais à saúde.” “Esse é o maior erro que você pode cometer numa entrevista de emprego.”

Claro que não há nada errado com o superlativo em si. Estabelecer hierarquias entre fatos e ideias é um processo básico do pensamento. Por meio da linguagem, o mundo fica menos ininteligível e hostil.

É a inflação que leva uma das ferramentas da inteligência a produzir burrice. A milésima “vista mais linda da Terra” condena todas as vistas da Terra ao tédio. (Isso já era verdade antes de vir a IA e esculhambar de vez a ideia de vista.)

O truque publicitário pueril que um dia nos fez rir —”O melhor pão do mundo!”, estampava na sacola de papel a padaria da esquina— hoje rege grande parte da paisagem textual em que estamos mergulhados.

Faz sentido: uma vez estabelecido que o único propósito da vida é vender —e se vender—, vamos de superlativo descabelado, como num velho anúncio de xampu: “Seu cabelo vai ser o melhor da rua”.

O superlativo faz a gente se deter por um instante, leva uma migalha da nossa atenção. Promete um tipo de grandeza, e estamos sequiosos de grandeza.

Acaba por nos decepcionar, claro, pois o que se recicla do patrimônio cultural com esses pregões estridentes é só quinquilharia, lixo pop. Não importa, continuamos rolando a tela: quem sabe na próxima.

E com esse chiclete somos todos arrebanhados em currais imensos de consumidores, que megacorporações vendem então para outras megacorporações.

“É cilada, Bino!” A maior de todos os tempos.


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Fonte: Folha

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