maio 14, 2025
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A anistia esqueceu que é parente da amnésia – 16/04/2025 – Sérgio Rodrigues


A memória da língua costuma esquecer que a anistia, palavra do momento, é parente da amnésia, isto é, da perda total ou parcial da capacidade de lembrar.

No grego antigo, as palavras “amnestía” e “amnesía” viviam grudadas. A primeira nomeava o esquecimento, a segunda a ausência de memória. Eram aquele tipo de manas que até a mãe confunde às vezes.

A história levou cada uma por um caminho, como acontece a tantas irmãs. A anistia fez carreira internacional mais depressa: quando chegou ao português, no século 18, depois de rebater no latim e no francês, já trazia o sentido de “perdão coletivo concedido pelo soberano”.

A amnésia precisou esperar até que viesse a onda dos cultismos do século 19, quando entrou no vocabulário do português como um termo recém-criado de psicopatologia. Isso explica que tenha conservado a grafia metida a besta, com consoantes dobradas, que sua irmã dera um jeito de perder ao cair na boca do povo.

Se a gente pensar bem, o parentesco entre a anistia e a amnésia faz sentido em outros planos além do etimológico –no mínimo tem ecos históricos, políticos e cívicos.

De modo geral, não se considera a amnésia uma coisa boa. Ninguém diz: “Tia Norma não reconhece mais seus filhos, que maravilha! Agora vai poder recomeçar tudo do zero, mágoas pacificadas, e pensar apenas no futuro”.

Tais frases soam absurdas por razões óbvias: a relação da tia Norma com os filhos, por mais que possa ter seus conflitos, é uma das fibras mais profundas de quem ela é. Não se trata de uma lousa que seja possível apagar. É a história dela.

No entanto, quando se passa da memória individual para a coletiva, muita gente quer nos convencer de que as regras mudam de todo. Ser incapaz de aprender com o passado ou de sequer se lembrar dele é, para essa gente, um elevado valor patriótico e não uma forma de demência.

A perda da memória deixa de ser encarada como patologia para se apresentar como bênção –ou, pelo menos, como um modo de garantir que ninguém pague o pato numa terra patologicamente aferrada aos seus atrasos.

“De 15 em 15 anos o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos”, disse o grande Ivan Lessa, que também anda esquecido.

Quando foi promulgada a Lei da Anistia de 1979, que perdoou os crimes cometidos por agentes do Estado nos porões da ditadura militar, o presidente da República era um general de má catadura. Parece provável que não houvesse mesmo como fazer melhor naquele momento.

Hoje vivemos o mais longo período democrático da nossa história. Vai ser bem vergonhoso se a politicagem brasileira conseguir usar a piedade inspirada pelos sem-cérebro do 8 de Janeiro para forjar o perdão aos mandantes de uma trama golpista mais escancarada que a fome de grana do centrão.

É por tanta gente agir como se passar a borracha na história fosse uma forma aceitável de construir uma nação que, bem, uma nação ainda não chegamos a ser.

É por isso também que o Brasil às vezes vê filhos seus fugindo à luta e não se liga no perigo. Como a tia Norma, nem os reconhece como filhos.


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Fonte: Folha

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